



Da kutanda, rememoramos a história de um território edificado por pessoas cujas identidades se deram em terra africana. Onde os saberes trazidos com esses corpos históricos fundamentam costumes e práticas de morada. Onde a espiritualidade ontológica renova a felicidade terrena através dos compartilhamentos ancestrais que reafirmam mensagens suburbanas, e memórias do território que se fazem presentes através de bailes de jambetes, funks e diversas outras formas de resistir.
Assim é Petrópolis, assim é o Brasil. A história de glamour e de roletas se curva ao que sempre esteve aqui, aquilo que o discurso de embranquecimento insiste em negar: as falhas das fábulas que nos contam sobre nossas cidades.
É uma alegria viver para poder ver o nome africano kutanda reviver através das fissuras da língua.
Quitandinha tem origem no quimbundo, língua falada em Angola, antigo Reino do Dongo, lugar de origem de muitos africanos que formam a grande população afro-brasileira. Assim, kitanda (feira) deriva do termo kutanda (ir para longe). Esse lugar remonta à origem histórica de presenças que se deram e se dão nesse território, onde a profissão das quitandeiras — mulheres pretas que se fizeram presentes na quitanda — movimentou uma fatia importante da economia do século XIX.
A história única em Petrópolis faz com que as experiências negras sejam alijadas da memória da cidade, gerando um longo e sistemático processo de apagamento dessas presenças. Ao rejeitarmos essa narrativa forjada, subvertemos a história lacunar, reavendo uma espécie de harmonia ancestral. A história negra de Petrópolis será contada desde os primórdios do que conhecemos por cidade, onde as tecnologias africanas ergueram os sustentáculos da nossa existência por aqui.

Vídeo Thomas Mendel.
Fotografias Thomas Mendel, Lucas Landau.

TERRAS e
TOPONÍMIAS
Africanos, afrodescendentes, povos originários são os donos dos conhecimentos que possibilitaram chegar a Petrópolis. Quem partia da província do Rio de Janeiro, do Cais dos Mineiros, atual Casa França-Brasil, atravessava a baía de Guanabara em barcos africanos, as faluas. Desembarcava no Porto da Estrela e seguia pelo Caminho Novo, trecho que correspondia ao percurso desse porto até à fazenda do Padre Correias. A história do Centro Histórico não é a história da formação territorial e populacional de Petrópolis. Há muito mais riqueza e diversidade como registros de resistência dos que se refizeram livres e formaram os quilombos Maria Conga, Vargem Grande, Maria Comprida, Tapera.
É preciso insurgir e lançar mão de mecanismos que nos eduquem para as divergências da oficialidade como os nomes dos bairros Carangola, Caxambu, Quissamã e Quitandinha que são sabidamente de origem africana; já Itaipava e Itamarati que são de origem indígena. São denúncias que revelam a importância de conhecer os processos das escolhas da história, rompendo com abordagens eurocêntricas que destroem e predam conhecimentos de outros povos. Não cabe mais falar em contribuições; é preciso falar do protagonismo, das tecnologias das nações que pensaram nossas localidades e nossas cidades, que pensaram o Brasil para erguê-lo.
ORIGEM da
PALAVRA
Roubam o “k” da kutanda e, na língua corrente da colônia, lançam-nos o “q”.
A letra em si não altera o som, mas altera a história, a origem geográfica e muitos afetos da palavra. Restituir nossos fonemas é uma maneira de consolidar presenças negras que evidenciam a tensão entre o lugar-espaço e as narrativas forjadas.
Recuperar das bocas as palavras que nos são espirituais e fundadoras é uma tecnologia insurgente de reconquista negra.
QUITANDA de
ERÊS
Ritual de religião de matriz africana em que a quitanda ou quitandinha é a festa oferecida aos erês nos barracões de candomblé da nação Angola. Em cestos e esteiras de palha são expostas e vendidas frutas, rememorando os mercados africanos e de escravizados de ganho, que vendiam quitutes para compra de sua alforria.
A energia se eleva, o axé flui através da troca das comidas e moedas, purificando os frequentadores, filhas e filhos da casa. Uma quitanda de cura onde a alegria predomina a todo momento no visível e invisível.
ESCOAMENTO de
TECNOLOGIAS
AFRICANAS
As tecnologias africanas permitiram o estabelecimento neste território de grandes grupos populacionais. A presença técnica dos povos negros contribuiu com a modificação urbanística, a interação com a flora e a fauna locais, a plantação e o processamento de alimentos. Os africanos que chegaram ao nosso território detinham grande conhecimento de pesca e agricultura, sendo habilidosos plantadores de inhame e palmeira. Também manejavam rebanhos de cabras e caçavam javali. Eram exímios oleiros e ferreiros, dominando historicamente as técnicas da cerâmica e da forja. Sua contribuição na construção dos espaços sociais se deu de forma definitiva durante a formação do Brasil.
Ponto de apoio para a passagem de tropeiros e outros viajantes, a quitanda era entreposto para fornecimento de equipamentos, todo tipo de serviços de reparo em metal, couro e madeira, fornecimento de refeições, bebidas, vestimentas e cuidados de saúde — os povos africanos também tinham grande conhecimento da medicina natural. Era um serviço fundamental para os viajantes, e para os primeiros residentes da região a quitanda guarnecia toda a cidade. Foi através dela, da quitanda, de seus serviços e conhecimentos que sobreviveram os imigrantes vindos de outras terras.
KUTANDA
ANCESTRAL
Caminho possível de reinvenção escrita por mãos negras, a partir da reivindicação do tempo-espaço. Reinterpretação dos lugares, narrativas, pessoas e práticas, ressignificando o território. Por aqui passamos, estivemos, resistimos e nada destruímos — ao contrário, somos e seguimos sendo sustentáculos desta terra.
Um rito de renascimento com a divinização do ancestral que partiu. Onde as memórias resultantes do acúmulo repetitivo da experiência humana negra ressurgem como experiências suburbanas que se sobrepõem e dão vida a movimentos insurgentes de celebração da cultura e tradições afro-brasileiras. Aqui, conectamo-nos à ancestralidade histórica de origem e ocupação territorial da kutanda. Na compreensão do passado histórico surge uma flecha apontada ao futuro.
JAMBETES
O movimento Baile das Jambetes tem mais de 40 edições desde sua estreia nos anos 1950. Idealizado por José dos Santos, conhecido como Zezinho, produtor petropolitano com mais de 900 eventos realizados na cidade, entre shows, bailes e desfiles, muitos deles no Palácio Quitandinha. O nome jambete surge para driblar a censura sobre a promoção de eventos com nomes como afro, negro, preto ou black, associando corpos negros à cor de jambo.
Nos Bailes das Jambetes encontramos tudo isso, um lugar sensível e afirmativo, onde corpos negros são celebrados e suas vidas, comemoradas. Impulsionando o encontro, a identidade, a celebração da beleza e da felicidade negras.
FURACÃO 2000
Registro da trajetória de uma família imersa na vontade de se comunicar, fazendo a expertise em técnica de sonorização transformar-se em uma rádio, depois em um cinema, e, por fim, na equipe de som que virou um símbolo dos bailes brasileiros por muitas décadas - a Furacão 2000. Esse feito é narrado em Guarany - Eu sou o menino do Cinema Paradiso, de Aline Castella, que registra a origem do baile da Furacão 2000 no Palácio Quitandinha. Muitas das nossas ações são resultado dos sonhos e da concretização de todo projeto de quem veio antes de nós. Guarany nos conta que sucesso é estar preparado para as oportunidades que estão por vir.


Ficha técnica do núcleo
Da Kutanda ao Quitandinha
Curadoria
Filipe Graciano, Marcelo Campos
e Renata Aquino